Polícia Militar: os dois lados da moeda

    Diante desse cenário todo de manifestações e mobilização popular, me segurei para não escrever algo a respeito. Em primeiro lugar, porque não tinha certeza sobre o que discorrer. Não havia necessidade alguma em relatar os fatos ocorridos (como a famigerada "revolução dos vinte centavos") várias e várias vezes, enfatizando a indignação da população e todas as outras coisas óbvias; os telejornais e comentaristas já faziam isso muito bem sem mim. Em segundo, estava esperando todo o fervor passar para só assim poder analisar a questão com mais clareza, dispondo de um panorama que abrange desde o início até o apaziguamento dos protestos.
    No entanto, sinto que se há um bom momento para tratar da situação, o momento é agora. Cinco minutos com a TV ligada no noticiário de horário nobre bastam para nos darmos conta que a questão é emergencial, e requer um cuidado especial.

    Toda sociedade é repleta de conflitos gerados por divergências de pontos de vista. A que vivemos atualmente não é exceção, ainda mais quando nos referimos à segurança pública. Inevitavelmente, esta está diretamente ligada à Polícia Militar. Contudo, destaco que me limitarei a abordar somente o que me concerne — isto é, a PM do Estado de São Paulo —, pois penso estar apto a falar somente acerca do que conheço.
    A "primavera brasileira" (se me permitem esta analogia à primavera árabe) vem sendo marcada, dentre outras coisas, por enormes demonstrações de violência gratuita por parte de alguns policiais militares. Algumas pessoas ousam até descrever as cenas como "policiais à espreita, preparados para nos atacar ao mínimo motivo". Os que sentiram na pele (ou, no caso, nos olhos) as bombas de gás lacrimogênio possuem autoridade para confirmar a experiência vivida por muitos, principalmente na grande São Paulo.
    Como se já não bastasse, muitos dos nossos governantes fizeram uso de seu poder de modo a tentar criar "adaptações" (para não dizer violações) constitucionais, tais como as PECs que proíbem os manifestantes de usar máscaras, produtos que retardam as bombas de efeito moral e, por mais absurdo que possa soar, celulares e filmadoras. Tendo sido aprovados ou não, estes projetos são um insulto às liberdades individuais que todo cidadão deveria, ao menos teoricamente, possuir.
    Isso tudo somado ao abuso de poder e ao explícito desprezo pelos direitos humanos por parte dos militares fez com que esses últimos perdessem cada vez mais a confiança da população, especialmente dos jovens, trazendo à tona assim os recém-despertados debates sobre a desmilitarização da Polícia. Entretanto, entrar neste mérito significaria fugir do escopo, então retenho-me às desavenças decorrentes dos confrontos entre militares e civis.
    Apesar da própria Constituição Federal ressaltar que a Polícia Militar existe para proteger o cidadão, resquícios do regime militar de 1964 mantêm a concepção de enfrentamento, criando assim a lógica de que todo manifestante é suspeito e, portanto, inimigo. Isto é inerente também à mentalidade construída pelo regime de caserna vivenciado pelos policiais militares, tornando muitos deles avulsos à realidade do brasileiro comum. Cria-se então uma dualidade "militar/civil", dando a falsa ilusão de que os policiais não são civis, quando na verdade são.
    Infelizmente, tem-se como fruto disto um caráter corporativista que surge na Polícia, fazendo com que ela sirva a seus próprios interesses em vez de servir a população. Por mais convincentes (ou não) que possam parecer os contra-argumentos dos grandes generais, uma base de disciplina e hierarquia militares influencia sim na função civil da corporação.
    Porém, o mundo não é simplista como uma história em quadrinhos; ele não é feito de mocinhos e vilões. Existe uma complexidade muito maior por trás do pano, e vários fatores devem ser considerados antes de tirar qualquer conclusão. É de crucial importância ver o outro lado da moeda. Como toda instituição, a PM é constituída por pessoas distintas, cujas ideias progridem com o passar dos anos. Pensar nos membros da corporação como uma massa uniforme e estagnada de pensamentos e ideologias é um insulto ao bom senso.
    Nos colégios militares, há uma tentativa evidente de alterar a mentalidade herdada pela ditadura (de que o civil é o "outro", o inimigo) através da educação. Os processos de seleção e treinamento envolvem diretamente questões de cunho humanistas, e refutar isto seria admitir para si a ignorância a respeito. Contudo, mudanças não ocorrem do dia para a noite. A percepção de mundo dos militares é algo profundamente arraigado, e obviamente demanda tempo para sofrer qualquer alteração significativa em níveis completos.
Uma flor nasceu na rua!
É feia, mas é realmente uma flor.
    Não só isso, mas também uma parcela muito grande dos membros da Polícia Militar é a favor da supracitada desmilitarização da Polícia. Os motivos não são difíceis de entender. A Constituição estabelece leis específicas para policiais, impedindo-os de fazer greve, submetendo-os a tribunais especiais (com punições por vezes muito mais severas) e determinando que cumpram hora extra sem pagamento adicional. Estes são apenas alguns malefícios dentre muitos, não sendo aplicados, porém, à Polícia Civil.
    Para piorar, o regimento interno da PM impede que seus membros, aposentados ou não, critiquem a corporação. Expressar-se "deslegitimando a Polícia Militar" os submete a uma sanção disciplinar, respondendo esta sob o Código Penal Militar. Penso ser importante pontuar isto, pois ainda há a adicional possibilidade de demissão, tornando compreensível a submissão dos policiais perante ordens superiores.
    É preciso ter em mente que a Polícia Militar como um todo não aprova qualquer tipo de brutalidade, e realiza através da Corregedoria Militar a apuração e a efetiva punição aos responsáveis. Generalizar toda a PM a ponto de inferir que todos os seus membros são violentos seria tão sensato quanto afirmar que todos os manifestantes estão lá para depredar. "Algumas laranjas podres podem estragar o saco inteiro."
    É claro que as intenções não mudam os fatos. Apesar dos esforços para combater a mentalidade fascista, muitos policiais continuam a desempenhar grandes atos de truculência. As gravações mostram que não são poucos os PMs que aproveitam a oportunidade de controlar as manifestações para externar seu repúdio aos protestantes (vistos todos como "baderneiros" aos seus olhos) através da força bruta.
    Além disso tudo, atribuir toda a culpa exclusivamente aos policiais, sem levar todos os outros possíveis responsáveis — sejam eles tanto pessoas quanto circunstâncias — seria de uma pobreza lógica sem tamanho. O confronto direto entre militares e civis vem de longa data. Destacam-se, por exemplo, as revoltas do período regencial (que por si só já englobam inúmeros combates) e, um tempo depois, as greves operárias da República Velha. Nas primeiras, com exceção da Guerra da Farroupilha, o Império conseguiu imperar sua vontade através das Forças Armadas, não se importando com quantos litros de sangue derramados fossem necessários. E mesmo após a Proclamação da República o Governo continuou a vencer. A própria Greve Geral de 1917, na qual ele concedeu aos manifestantes o aumento salarial que tanto exigiam, foi solucionada através de uma manobra estratégica. Embora o dinheiro tivesse caído na conta dos trabalhadores, a inflação não foi minimamente combatida pelo governo, trocando assim "seis por meia dúzia".
Tem-se como fruto disto um caráter corporativista que surge na Polícia, fazendo com que ela sirva a seus próprios interesses em vez de servir a população.
    Outro ponto importante a ser desmitificado é referente à presença da PM nos protestos. Muita gente (inclusive eu, até poucos dias) mantém uma ideia errônea de que a Polícia obedece ordens expressas do Governo para acompanhar as manifestações. Na realidade, o Governo nada tem a ver com a presença ou ausência da PM em tais eventos. A Polícia Militar é obrigada, novamente pela Constituição Federal, a estar presente em absolutamente qualquer evento suscetível a eventuais problemas, tais como as passeatas. Portanto, a menos que o Governo se considere superior à Constituição, não compete a ele mandar a PM acompanhar ou não os protestos.
    Por fim, o "certo ou errado" me parecem entrelaçados em diversos pontos. O que há é um ciclo. Vandalismo gera repressão, repressão gera vandalismo, e isto ganha dimensões assustadoras. "Quem começou" já não está mais tão claro, e mesmo que estivesse, de que importa? As pessoas que estão ali manifestando-se pacificamente, exercendo a liberdade de expressão que lhes é de direito, acabam pagando o pato. E lá se vão a liberdade, a expressão, os direitos humanos e o futuro do Brasil.