Enem: afundando a educação desde 2009

    Qualquer um que não viva numa realidade paralela certamente já ouviu falar sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Quando foi criado, em 1998, tinha como objetivo primordial avaliar a educação brasileira. Com somente 63 questões, compreendia diferentes temas abrangendo razoavelmente os principais assuntos vistos no Ensino Médio. Isso durou até 2008, pois no ano seguinte, o Ministério da Educação (MEC) criou o Sisu a fim de transformar o exame num método de ingresso em instituições de ensino superior.
    Talvez por conta da aclamação incessante que vem sendo realizada pela mídia, poucos possuem senso crítico o suficiente para reconhecer as incoerências do Enem. Não escrevo aqui como um expert, e sim como um vestibulando que, após quase três anos resolvendo os mais variados exercícios, acredita estar apto a discorrer sobre eles.
    É impossível julgar a prova inteira de maneira uniforme, uma vez que cada um dos núcleos do Ensino Médio possui uma natureza própria de questões. Porém, antes de pontuar matéria por matéria, é necessário ressaltar que o exame, no geral, perdeu sua essência. Já não se prioriza a verdadeira aprendizagem dos conteúdos propostos pela escola, mas uma capacidade de leitura sobre-humana. Sim, pois o número de questões aumentou de 63 para 180, o que é absurdo. Os que já fizeram algum simulado ou o próprio Enem sabem bem do que estou falando. Cada pergunta contém um texto imenso, muitas vezes indispensável para a obtenção dos dados. Inevitavelmente, a prova fica extremamente cansativa e não seleciona necessariamente os mais instruídos, e sim os mais resistentes.

    Quanto à parte de matemática, especificamente, fica evidente a superficialidade. Salvo raros casos, as questões se limitam a conversão de medidas (distância, área, volume, quantidade) e a gráficos supérfluos. Não estou dizendo que esta parte da prova não seja difícil. O problema é onde reside a dificuldade. A interpretação do enunciado com certeza deve ser importante para a resolução do exercício, porém, dentro de limites razoáveis. O tamanho e a sobrecarga de informações nas questões algébricas fazem da prova algo exaustivo e leviano.
    No que diz respeito aos exercícios de português, não há muito o que ponderar. O material oferecido como base (tirinhas e fragmentos textuais) é interessante, mas as questões acerca deste são óbvias e quase não requerem raciocínio algum. O exercício mais difícil que já fiz até hoje poderia ser facilmente resolvido caso o vestibulando soubesse a definição de "concomitância".
Já não se prioriza a verdadeira aprendizagem dos conteúdos propostos pela escola, mas uma capacidade de leitura sobre-humana.
    Na tentativa de justificar esse déficit de conteúdo do Enem, muitos educadores podem alegar que o caráter (escasso em conteúdo) da prova corresponde ao perfil do estudante brasileiro comum. Não há como discordar disso, tendo em vista a precariedade da educação do país. Contudo, estabelecer este nível de ensino como parâmetro para entrar na universidade só ajuda a promover o conformismo e, ainda pior, impede que haja uma cobrança pela melhora do sistema educacional.
    Este é justamente o principal motivo pelo qual as universidades mais tradicionais (USP, Unicamp, ITA, Unesp e várias outras) persistem em seus vestibulares próprios, apesar da pressão do MEC. Eles testam o verdadeiro potencial do candidato, ao contrário do Enem, que só os cansa. E ao contrário do que a oposição pode pregar, estas provas não são meramente conteudistas. A solução de grande parte dos exercícios requer, além do conhecimento da matéria, um raciocínio excepcional. Isso atribui à escola uma maior importância prática — cobrando uma melhor qualidade de ensino — e estimula o aluno a aprender, e não simplesmente a decorar. De nada adianta lembrar a lei do cosseno, por exemplo, se não saber visualizar onde e como aplicá-la. Não há maior prova disso que as incontáveis horas que passei tentando resolver questões da segunda fase da Fuvest, mesmo tendo à disposição as fórmulas e as resoluções.
    Apesar de tudo, é preciso reconhecer também os pontos positivos do Enem. Geografia, história, biologia, física e química, embora se apresentem em forma de enunciados e alternativas extensas para compensar a obviedade dos exercícios, possuem propostas um pouco mais interessantes. É possível encontrar diversas questões que cobram algum conhecimento sobre cidadania e atualidades. Proporciona ao candidato adquirir novos conhecimentos durante a prova. Esta é, decerto, uma característica bastante notável do exame, junto com a ênfase que atribuem à redação.
    Ainda assim, há muito o que considerar. Impor a todas as universidades brasileiras a aderência ao Enem é um insulto à diversidade nacional, pois parte da premissa de que o Brasil todo possui um sistema de ensino padronizado. Em verdade, esta ideia não poderia ser mais presunçosa. Cada estado tem um enfoque educacional específico. O Rio Grande do Sul e Santa Catarina, por exemplo, expressam através da escola o seu amor pelos processos históricos da região; o Ceará, por sua vez, demonstra cada vez mais uma preocupação maior com a matemática, investindo muito nesta área do conhecimento; e assim por diante.
    Os motivos que levam o MEC a continuar insistindo no Enem não são muito claros. Se, na teoria, o intuito é apenas criar uma avaliação uniforme para todo o território nacional, na prática sabemos que existem segundas intenções. Além da questão financeira, que é um pouco óbvia, me atrevo a cogitar a possibilidade de isso tudo não passar de uma tentativa de estagnar a educação e continuar criando, como diz o historiador José Murilo de Carvalho, uma população bestializada — em outras palavras, apolítica e conformada —, que aceita tudo o que o governo as impõe.
Comentário sobre o Enem 2013
    Depois de eu fazer diversas críticas, nada mais justo que enaltecer os pontos surpreendentemente positivos que presenciei no Enem este ano.
    A começar pelo que julgo mais importante, o nível das questões — principalmente as de matemática e de natureza — esteve significativamente mais alto. Ao contrário dos exemplares anteriores, as perguntas deste ano exigiam, em geral, mais raciocínio e um pouco mais de conteúdo. Muitos professores que já declararam algo a respeito concordam comigo quando digo que o exame este ano está mais próximo dos vestibulares tradicionais. Não há maior prova disso do que a própria questão da demonstração de Willian Harvey, copiada da Fuvest de 2007.
    Os textos, embora tão longos quanto antes, apresentam desta vez perguntas mais relevantes e mais conexas com a coletânea em si. Por mais incrível que possa parecer — especialmente quando se trata de Enem —, foram raras as questões que podiam ser resolvidas ignorando-se o enunciado. Em contraposto, isto também acarreta uma maior exaustão e acrescenta barreiras de tempo mais extensas.
    Além disso, foi notável a preocupação dos elaboradores da prova em dar enfoque a assuntos extremamente relevantes e de cunho social, ainda mais que nos anos anteriores, nos quais o repertório parecia ser exclusiva e enjoativamente baseado em sustentabilidade.
    Por outro lado, sentindo na pele o que é estar prestar o Enem "pra valer", me sinto apto a pontuar alguns defeitos muito graves.
    Na prova de linguagens, não só uma mas várias questões continham alternativas que, se fossem friamente analisadas, compreendiam múltiplas respostas. Propositalmente ou não, os elaboradores inseriram afirmações que davam margem à dupla ou tripla interpretação. Os vestibulares mais tradicionais, embora também deixem os candidatos em dúvida entre uma ou outra alternativa, tomam o devido cuidado para não exagerarem na subjetividade de ambas.
    A redação, que acabou por surpreender a todos com seu tema alheio aos diferentes tipos de manifestos recentes, possui pontos positivos e negativos. Se por um lado a proposta abordou um tema que muitas vezes é negligentemente ignorado pelos brasileiros e deve ser discutido, por outro limitou os candidatos ao senso comum — afinal, ninguém em sã consciência argumentaria (de modo convincente) a favor de dirigir embriagado —, assim como nos outros anos.
    Contudo, é no tempo que se encontra o pior defeito do Enem, especialmente no segundo dia. Cinco horas e meia, para uma redação (se consideramos uma redação bem planejada e estruturada) e mais 90 questões. É simplesmente impraticável, para qualquer um sem habilidades sobre-humanas ou sem um vira-tempo, ler, interpretar, analisar e resolver uma prova como esta nesse tempo. Tudo bem que "se está difícil para um, está difícil para todos" e "é preciso testar a resistência dos candidatos", mas fica evidente que os elaboradores não consideram o período de tempo relativamente ínfimo ao fazerem do Enem uma prova repleta de exercícios que exigem intermináveis contas de operação, que, embora simples, certamente demandam tempo e MUITA paciência.